Bruce Wayne Contra o MundoColunas

Imagine Batman de Stan Lee

O poder do amor e do verdadeiro heroísmo no centenário do gênio.


ATENÇÃO!
Este texto contém altos spoilers da edição “Imagine Batman de Stan Lee”.
Depois não diz que eu não avisei.


O ódio é sempre burro.
E as pessoas sabem ser muito burras.

Elas podem se tornar bullies depois de ler todas as histórias do Peter Parker no ensino médio.
Elas podem ser racistas, xenofóbicas, homofóbicas, preconceituosas ou nutrir qualquer tipo de discriminação mesmo depois de ler algumas edições dos X-Men.
Elas podem acreditar que “bandido bom é bandido morto” independente de quantos gibis dos Vingadores e do Demolidor elas leram.
Elas podem abominar o diferente mesmo lendo quadrinhos com o Hulk e o Coisa, podem detestar qualquer tipo de diversidade mesmo lendo quadrinhos do Pantera Negra e dos Inumanos, podem desprezar mulheres mesmo lendo quadrinhos protagonizadas por uma Jean Grey, uma Sue Storm, uma Vespa ou uma Mulher-Hulk.
E elas podem distorcer todas essas histórias para que se adequem à sua própria mentalidade limitada.


“Vamos ser bem diretos. Preconceito e racismo então entre os males sociais mais prejudiciais que assolam o mundo hoje em dia. No entanto, ao contrário de um time de supervilões fantasiados, eles não podem ser parados com um soco na fuça ou um tiro de arma a laser. A única forma de destruí-los é expondo-os, mostrando-os como os males insidiosos que eles realmente são. O preconceituoso é um hater irracional, ele odeia cegamente, fanaticamente, indiscriminadamente. Se o problema dele é com homens negros, ele odeia TODOS os homens negros. Se alguém ruivo o ofende uma vez, ele odeia TODOS os ruivos. Se um estrangeiro ganhou um emprego no lugar dele, ele odeia TODOS os estrangeiros. Ele odeia pessoas que ele nunca viu – pessoas que ele nunca conheceu – com a mesma intensidade, com o mesmo veneno. Agora, não estamos querendo dizer que não é razoável um ser humano desagradar ao outro. Mas, embora todo mundo tenha o direito de não gostar de alguém, é totalmente irracional, patentemente insano, condenar toda uma raça, desprezar toda uma nação, vilanizar toda uma religião. Mais cedo ou mais tarde, nós precisamos aprender a julgar uns aos outros por nossos próprios méritos. Mais cedo ou mais tarde, se desejamos ser dignos de nosso destino, precisamos encher o nosso coração de tolerância. Assim, e só assim, seremos verdadeiramente dignos do conceito de que o homem foi criado à imagem de Deus – um Deus que chama a nós TODOS de Seus filhos.”



Esse é, na íntegra, um texto escrito por Stanley Martin Lieber na sua coluna mensal Stan’s Soapbox em 1968, publicada em todos os títulos da Marvel e devidamente assinada pelo nome com o qual se tornou conhecido mesmo por aqueles que nunca abriram um gibi: Stan Lee, que neste dia 28 de dezembro de 2022 estaria completando 100 anos de idade.
Cocriador da maior parte dos super-heróis e vilões que hoje ditam os rumos da cultura pop ocidental (inclusive todos os citados no começo deste texto) e acostumado a escrever histórias com observações contemporâneas e críticas sociais, Stan sempre enxergou suas histórias como um reflexo do mundo que vemos da nossa janela. Não uma simples fantasia escapista, mas um jeito de expor a complexidade da realidade exaltando um ideal específico: o de que todos podemos ser heróis.
Não apesar de sermos quebrados.
Mas por causa disso.

Mas as pessoas sabem ser muito burras.
E elas teimam em afirmar que bom mesmo era quando política não se misturava com gibizinhos.

“De tempos em tempos, recebemos cartas de leitores que nos perguntam por que nossas revistas têm que ser tão moralizantes. Eles insistem em nos dizer que os quadrinhos deveriam ser uma leitura escapista, e nada além disso. Mas eu não consigo ver desse jeito. Pra mim, uma história sem mensagem, mesmo que subliminar, é como um homem sem alma.”

Este é um trecho de outro Stan’s Soapbox, também lá dos anos 1960.
Ele termina o texto dizendo:

“É claro que nossas histórias podem ser escapistas. Mas só porque algo é divertido não significa que precisamos desligar nosso cérebro enquanto lemos.”

O problema das pessoas que optam por ser burras é que elas teimam em nunca ver nenhuma outra interpretação que não seja a que convém a elas.
Stan Lee cocriou personagens diversificados – como por exemplo T’Challa, o Pantera Negra, rei e protetor de uma nação africana rica e incrivelmente avançada – no momento histórico de explosão dos movimentos de direitos humanos, com a certeza de que estava do lado correto da história, sempre misturando real e fantasia, sempre misturando política e gibizinho, sempre com o dedo em uma ferida aberta.

Uma ferida que nunca se fechou.
E Stan Lee sempre soube muito bem disso.

Por isso não foi surpresa que, no começo dos anos 2000, ao ser convidado pela editora DC para reimaginar seus principais personagens no projeto Just Imagine…, Stan resolvesse cutucar essa ferida mais uma vez.

E é quando nos deparamos com IMAGINE BATMAN DE STAN LEE (Just Imagine Stan Lee’s Batman, 2001), com arte de Joe Kubert.



Diferente do playboy herdeiro Bruce Wayne, o Batman de Stan Lee é Wayne Williams, um garoto negro e pobre. Após perder o pai, um policial, assassinado por bandidos, Wayne bate de frente com “Mão” Horgum, o chefão do crime local, que acaba incriminando-o por um assalto para se vingar.



Preso injustamente e recebendo a notícia da morte de sua mãe pouco tempo depois, Wayne passa seu tempo na cadeia treinando corpo e mente. Após impedir uma fuga em massa da prisão, ele ganha o perdão de sua sentença e, liberado, cria um uniforme baseado na única criatura que tinha como companhia dentro de sua cela: um morcego.



Fazendo fortuna como lutador de luta-livre sob o nome Batman, Wayne conta com a ajuda de um cientista ex-colega de prisão para aprimoramentos em seu uniforme, como lentes para visão noturna, sensores eletrônicos para amplificar a audição, asas planadoras e um traje feito de kevlar, a fim de se vingar da gangue que o colocou na cadeia. Ele cumpre seu objetivo, que culmina na morte de Horgum, e a partir de então passa a combater o crime em Los Angeles como Batman, o Homem-Morcego.



A história é, como diz o próprio Lee no prefácio, um exercício de imaginação. Ela não tem a pretensão de ser um aprimoramento do personagem, e inclusive passa longe da maioria das características que temos como básicas do Batman tradicional. O roteirista não quer copiar histórias, e sim brincar com conceitos. Sai de cena o detetive incrivelmente inteligente que se aperfeiçoou em todos os tipos de lutas, entra o ex-presidiário que levantou alguns pesos por alguns meses e precisou aprender a se virar para sobreviver à cadeia. Sai de cena a premissa de um homem complexo, cuja máscara é o próprio rosto, ter escolhido o morcego como símbolo pelo trauma da criatura, para o homem que se veste de morcego por conta dos dons naturais do seu “bichinho de estimação”.
Apesar de uma certa descaracterização da matéria-prima, o Batman de Lee tem pontos bem interessantes. Ele não é um homem branco, privilegiado, herdeiro de uma fortuna. Ele é um jovem negro, marginalizado, que fez sua fortuna por seus próprios méritos, com o único intuito de usá-la para combater o crime. Ele é fruto de uma sociedade discriminatória, de um sistema penitenciário racista, e que mesmo assim superou as adversidades para chegar aonde queria. Stan Lee não escolhe um protagonista negro a toa. Ele o faz porque entende o que é o verdadeiro heroísmo, como bem expõe em uma das falas mais clássicas do Homem-Aranha.


Qualquer um pode ganhar uma briga quando as chances são fáceis! É quando a coisa aperta… quando parece não haver chance… é que conta!”

O Batman é um herói nascido de um trauma. Mas não é um trauma que te faz um herói. É o que você faz para superar esse trauma.
Stan Lee faz do seu Wayne Williams alguém que não é um herói por se vestir de morcego e combater o crime. Ele é um herói por ter passado por tudo o que passou – a vida humilde em um bairro barra-pesada, a perda do pai, a prisão por um crime que não cometeu, a morte da mãe – sem baixar a cabeça, sem desistir.
É isso que toda obra do roteirista grita desde suas primeiras publicações: qualquer oprimido que não se torna o opressor É um herói.
O próprio Stan, filho de judeus imigrantes da Romênia, criado no judaísmo e testemunha de um dos momentos mais sombrios da história – o Holocausto nazista – sabia bem a resiliência necessária para a sobrevivência de um povo constantemente perseguido.

Imagine Batman de Stan Lee tem uma trama apressada e pode incomodar pela ingenuidade mais característica dos anos 1960 do que dos anos 2000.
Mas essa ingenuidade é essencial para não perder a pureza do olhar de Stan Lee a respeito de questões que podem afastar quando mostradas de um jeito realista demais.
É por isso que seus personagens sobrevivem quase que irretocáveis há seis décadas. Pelo equilíbrio perfeito entre o entretenimento escapista e a consciência social.



Em outro Stan’s Soapbox, ele escreve que sua missão é conseguir ilustrar que o amor é uma força muito maior que o ódio.
É algo que pode soar ingênuo demais, idealista demais.
Mas, no nosso momento histórico, nada é tão atual (e necessário) quanto essa afirmação.

Em meio a tanto ódio, o heroísmo está em se rebelar contra isso.
O heroísmo está na tolerância, na compreensão.
Está em abraçar as diferenças.

O heroísmo está no amor.

E que falta faz um Stan Lee nos dias de hoje…


Feliz centenário, Stan.
Sua mensagem pode até ser deturpada por alguns..
Mas nunca será esquecida por aqueles que realmente importam.

Thiago Brancatelli

Lindo, alto e charmoso. Não possui bichos de estimação, mas divide o aluguel com um cachorro vira-lata chamado Tyler. Já fez tudo o que queria antes dos 30, por isso passa seus dias deitado no sofá lendo quadrinhos, vendo Netflix e comendo Tortuguitas. Está em um relacionamento sério com o site XVideos, mas é apenas pelo sexo.